PL 1026/2021 – Breves reflexões sobre a proposta legislativa
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Autora: Juliana Feltrin
Revisora: Kelly Andreoli
Em 20 de março de 2020 o Congresso Nacional aprovou o Decreto Legislativo n. 06/2020, que reconheceu a ocorrência do estado de calamidade pública no Brasil em virtude da situação emergencial que se instaurava no país com o avanço do contágio do novo Coronavírus.
Ultrapassados mais de 12 meses do processo legislativo acima, o que se verifica até a presente data são incontáveis projetos de lei apresentados ao Poder Legislativo por meio de seus membros competentes e legitimados para tanto.
Dentre eles, o recente PL 1026/2021 chamou a atenção do setor imobiliário ao sugerir a alteração da Lei 8.245/91 (Lei do Inquilinato). A proposta foi apresentada pelo Deputado Vinícius Carvalho em 23/03/2021, ganhando destaque no cenário nacional ao ter o regime de tramitação de urgência previsto no art. 155 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados aprovado, no dia 07/04/2021.
O mencionado artigo admite a tramitação urgente de proposições que versem sobre matéria de relevante e inadiável interesse nacional[1].
Antes de adentrarmos ao mérito da proposta, importante recordarmos alguns conceitos jurídicos sobre a relevância da lei no Estado Democrático de Direito. Sobre o tema, nos ensina José Afonso da Silva:
É precisamente no Estado Democrático de Direito que se ressalta a relevância da lei, pois ele não pode ficar limitado a um conceito de lei, como o que imperou no Estado de Direito Clássico. Pois ele tem que estar em condições de realizar, mediante lei, intervenções que impliquem diretamente uma alteração na situação da comunidade. Significa dizer: a lei não deve ficar numa esfera puramente normativa, não pode ser apenas lei de arbitragem, pois precisa influir na realidade social. E se a Constituição se abre para as transformações políticas, econômicas e sociais que a sociedade brasileira requer, a lei se elevará de importância, na medida em que, sendo fundamental expressão do direito positivo, caracteriza-se como desdobramento necessário do conteúdo da Constituição e aí exerce função transformadora da sociedade, impondo mudanças sociais democráticas, ainda que possa continuar a desempenhar uma função conservadora, garantindo a sobrevivência de valores socialmente aceitos. (SILVA, 2007) (grifo não existente no original)
É incontroverso no ordenamento jurídico que a criação de uma lei deve servir à população, atendendo as necessidades impostas pela realidade existente a época de sua elaboração. Relevante observar, no entanto, que as legislações podem ter caráter transitório, ou se prestar a modificações definitivas, enquanto outra norma não a derrogar.
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Igualmente indiscutível os impactos causados pela pandemia em diversos âmbitos da nação, entre eles, a crise causada no mercado de locações desde meados de março de 2020. Em relação direta, destaca-se os problemas enfrentados pelas locações residenciais em virtude do assolamento econômico e afetação da renda de diversas famílias. Do mesmo lado sofreram às relações locatícias não-residenciais decorrentes das restrições de funcionamento do comércio, culminando na triste realidade do encerramento definitivo de inúmeras atividades comerciais em exercício. Além do assim chamado “comércio de rua”, os empreendimentos de Shopping Center, Malls e galerias foram fatalmente afetados.
Um ponto é certo: as locações tiveram um impacto capaz de movimentar toda a cadeia, iniciando-se incontáveis discussões jurídicas, empresariais e políticas sobre o tema.
Neste contexto e na malfadada tentativa de encontrar soluções para a população, sobreveio uma das primeiras intervenções nas relações privadas, qual seja: o PL 1179/2020, sancionado pelo Presidente República e convertido na Lei 14.010 de 10 de junho de 2020. A referida Lei dispunha sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia do coronavírus (Covid-19), com data final de vigência prevista para 30 de outubro de 2020.
Ressalvadas as críticas à intervenção, parece ter acertado o legislador ao promover a criação de uma lei transitória, justamente para atender a uma necessidade passageira da população brasileira, ainda que não se pudesse, à época, projetar o período em que tal situação iria se findar.
Esta, todavia, não é a situação do PL 1026/2021 em discussão!
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Isto pois, a propositura legislativa recente tem a intenção de promover a alteração da Lei 8.245/91, revogando-se o atual parágrafo único do artigo 17[2], e acrescendo um parágrafo ao artigo 18[3]. A duradoura Lei do Inquilinato que neste ano de 2021 comemora trinta anos de maturidade no cenário nacional, agora, se vê prestes à uma modificação de proporções que pode desestabilizar a livre negociação, diga-se, em âmbito especialmente privado.
A nova proposta surgiu em razão de outro imbróglio causado pela pandemia às relações locatícias, qual seja: o descolamento do índice IGP-M da Fundação Getúlio Vargas, utilizado em muitos contratos por livre escolha das partes no momento de sua elaboração.
O mencionado índice é composto pela média ponderada de três outros índices, a saber: 60% do IPA (índice de preços ao produto amplo), 30% do IPC (índice de preços ao consumidor) e 10% do INCC (índice nacional de custo da construção), sendo que o maior percentual de sua composição sofreu exorbitante alta, basicamente em virtude de desvalorização cambial, aumento de volume de exportações e aquecimento de demandas industriais. O IPA é diretamente relacionado a matérias-primas com preços em dólar, formado pelo mercado internacional de commodities.
Para se ter breve noção do impacto, o IGP-M acumulado anual em abril de 2020 foi de 6,6908%, ao passo que em abril de 2021 o acumulado de 12 meses foi de 32,02%.
Com a informação acima, não é de se surpreender que os contratos de locação que adotaram o referido índice pudessem sofrer um reajuste desproporcional à realidade inflacionária do país. O resultado obtido é, sem dúvidas, um descolamento dos preços efetivos de aluguéis no mercado de muitos imóveis. Vale pontuar que a situação se iniciou em setembro de 2020.
E, neste novo contexto nacional, entendeu o legislador pela propositura da reforma, visando garantir estabilidade as relações, de modo, a meu ver, equivocado.
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Isto porque, o projeto traz a seguinte sugestão de alteração – definitiva – da Lei do Inquilinato:
“Art.18………………………………………………………………………
Parágrafo único. O índice de reajuste previsto nos contratos de locação residencial e comercial não poderá ser superior ao índice oficial de inflação do País medido pelo IPCA (Índice de Preço ao Consumidor Amplo), ou outro que venha substitui-lo em caso de sua extinção. É permitida a cobrança de valor acima do índice convencionado, desde que com anuência do locatário.”(NR) Art. 3º Fica revogado o parágrafo único do Art. 17 da Lei n º 8.245, de 18 de novembro de 1991.
Neste ponto do texto, vale transcrever parte da justificativa apresentada pelo Deputado proponente da alteração:
Os inquilinos estão desesperados com os índices de reajuste dos contratos de aluguel neste período de pandemia. A Lei do inquilinato prevê a livre negociação do valor do reajuste entre locador e locatário; todavia essa livre negociação vem trazendo prejuízos ao locador, que na necessidade de fechar o contrato, aceita qualquer índice de reajuste. (…) Defendemos a livre negociação, mas também não podemos deixar o lado mais fraco dessa relação à mercê das regras do mercado. (grifo não existente no original)
De pronto, é possível observarmos duas incongruências no referido projeto: (i) a justificativa pautada em uma situação transitória, postulando-se ao final uma alteração definitiva; (ii) a premissa equivocada de que o contrato de locação possui “um lado mais fraco”.
É nítido que a justificativa exarada pelo legislador não possui correspondência lógica com a própria sugestão. Isto porque, ainda que não se admita a intervenção estatal nas relações privadas, em respeito à autonomia da livre vontade das partes – ainda assim – se fosse o caso de conferir segurança jurídica às diferentes relações, que o fosse por uma medida transitória apta a enfrentar os problemas da sociedade durante a pandemia, solucionando os efeitos nefastos e inegáveis. No entanto, repita-se, não deve ser admissível uma intervenção às relações privadas que têm maturidade e uma legislação especial suficiente para resguardar às partes (diga-se, paritárias na relação).
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Retomando o conceito inicialmente trazido neste texto, devemos rememorar que a legislação deve ter aplicação na vida social, sendo ineficaz a existência de letra morta. E, sobre tal ponto, surge nova reflexão: a aplicação prática da futura lei às partes que vem sofrendo os efeitos da alta do IGP-M.
Naturalmente, os contratos em curso são aqueles afetados pela inesperada e desproporcional alta do índice, já que os instrumentos firmados após setembro de 2020 assim o foram em conhecimento à situação, não podendo se alegar ignorância ou imprevisibilidade em benefício próprio.
A propositura legislativa, contudo, tão teria eficácia prática às relações locatícias afetadas, pois salvo opinião contrária e possíveis modulações de retroatividade, imprime-se a regra geral e a norma constitucional aplicável.
Preconiza a Constituição Federal que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Neste contexto, entende-se por ato jurídico perfeito os contratos de locação celebrados antes da legislação que será votada e, possivelmente entrará em vigor no futuro.
Explica Carlos Elias, em artigo que recomendo a leitura:
Ato jurídico perfeito abrange contratos já celebrados, ainda que sua execução tenha sido protraída no tempo. Esse conceito só se estende a situações jurídicas individuais, e não a institucionais, o que justifica a retroatividade de leis que tratam de padrão monetário, correção monetária e multa moratória em condomínio edilício.[4]
O contrato de locação, portanto, se enquadra no conceito de ato jurídico perfeito em situação jurídica individual, de termos ajustados entre locador e locatário, interpretados à luz da boa-fé.
Conclui-se, em simples análise, que o PL proposto afrontaria à Constituição Federal e, ainda, não teria eficácia para solucionar as relações jurídicas abaladas, mas interviria inconstitucionalmente nas relações privadas futuras.
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E mais, partindo-se da premissa geral de irretroatividade da lei, e considerando a aplicação da proposta aos contratos futuros, novamente há que se refletir sobre sua necessidade-utilidade.
Ora, as partes que ajustam um novo instrumento neste momento de pandemia – com conhecimento da volatilidade do índice IGP – assim o fazem por livre escolha, razão pela qual deve ser defendida a liberdade contratual das relações privadas. E nota-se, que a parte final da propositura assim dispõe que: É permitida a cobrança de valor acima do índice convencionado, desde que com anuência do locatário.
Portanto, sendo possível a utilização do índice acima do teto do IPCA, com anuência do locatário, ou seja, em comum acordo entre as partes como comumente o é, mais uma vez indago qual a utilidade da alteração da legislação atual proposta.
Além das reflexões supra, na hipótese de aprovação da propositura na forma originária, questiona-se se esta teria aplicação perante as relações entre lojistas e empreendedores de shopping center, ou se prevaleceria o quanto disposto no art. 54 da Lei 8.245, que reforça a livre negociação dos respectivos contratos. É inegável que este foi um dos setores mais afetados, e a futura lei a ser aprovada irá gerar antinomia jurídica, sendo que ambos dispositivos se encontrarão no mesmo nível hierárquico e de especialidade.
Por fim, o que se vislumbra do aludido Projeto de Lei é que este poderá não ter eficácia prática para as relações locatícias, uma vez não possuir condições de retroatividade, mesmo que mínimas, por ferir ato jurídico perfeito. Ainda, com o devido respeito, a proposta traria conturbações a um mercado que possui condições de enfrentamento de suas adversidades sem a intervenção estatal por intermédio do Poder Legislativo, a despeito de, logicamente, não se excluir a apreciação do Poder Judiciário para o reequilíbrio de contratos, existindo legislação suficiente para tal pleito pelas partes prejudicadas – em destaque, o artigo 317 do Código Civil[5].
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Neste sentido, subsiste a reflexão inicial, qual seja: O PL 1026/2021 terá, de fato, utilidade e será capaz de promover influência na realidade social, sem afetar a livre vontade das partes que permeiam as negociações privadas?
Bibliografia
SILVA, J. A. (2007). Curso de Direito Constitucional Positivo (28ª ed.). São Paulo: Malheiros Editores.
OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Retroatividade das leis: a situação das leis emergenciais em tempos de pandemia. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/335960/retroatividade-das-leis–a-situacao-das-leis-emergenciais-em-tempos-de-pandemia>. Acesso em: 27/04/2021
Atividade Legislativa, PL 1026/2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2275102. Acesso em: 27/04/2021
[1] Art. 155. Poderá ser incluída automaticamente na Ordem do Dia para discussão e votação imediata, ainda que iniciada a sessão em que for apresentada, proposição que verse sobre matéria de relevante e inadiável interesse nacional, a requerimento da maioria absoluta da composição da Câmara, ou de Líderes que representem esse número, aprovado pela maioria absoluta dos Deputados, sem a restrição contida no § 2º do artigo antecedente.
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[2] Art. 17. É livre a convenção do aluguel, vedada a sua estipulação em moeda estrangeira e a sua vinculação à variação cambial ou ao salário mínimo.
Parágrafo único. Nas locações residenciais serão observadas os critérios de reajustes previstos na legislação específica.
[3] Art. 18. É lícito às partes fixar, de comum acordo, novo valor para o aluguel, bem como inserir ou modificar cláusula de reajuste.
[4] https://www.migalhas.com.br/arquivos/2020/11/fe48ab45d84d4f_2020-retroatividade-migalhas.pdf
[5] Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.