Redação: Juliana Medeiros Jorge Feltrin
Colaboração: Karoline Paulino de Souza
Resumo: O presente material fará breve análise dos aspectos relevantes de recente legislação aprovada e publicada em 21.12.2018, a Lei 13.777/18, responsável pela positivação do instituto da multipropriedade – ou time sharing – no Código Civil e na Lei de Registros Públicos.
A Lei 13.777/2018 não surgiu no ordenamento jurídico brasileiro como uma inovação aos operadores do mercado imobiliário, ao contrário, refletiu uma necessidade que se manifestava há décadas, sendo fortemente impulsionada pelo ramo hoteleiro, vindo a positivar conceitos e aspectos de aplicação prática que circundavam à jurisprudência e os Cartórios Registrais do País.
O sistema da multipropriedade é oriundo do direito internacional, com surgimento em países da Europa, como França, Itália e Portugal, com posterior influência nos Estados Unidos. Destaca-se, que um dos primeiros países a regulamentar o instituto foi a Grécia, através de legislação promulgada em 1986, que a considerava como modalidade de locação.
No Brasil, a legislação específica veio a suprimir a ausência de regulamentação que pudesse conferir segurança jurídica àqueles que pretendem investir neste modelo de negócio, que, em suma, tem como objetivo a fomentação de capital com aquecimento da economia, geração de empregos, circulação de riquezas com a divisão da coisa não apenas entre pessoas, mas em frações de tempo que possam conferir à função social da propriedade um melhor aproveitamento econômico.
A legislação acresceu ao Código Civil o Capítulo VII-A, incluindo os artigos 1.358-B a 1.358-U, entre os quais temos a apresentação das disposições gerais, a forma de instituição da multipropriedade, os direitos e obrigações do multiproprietário, e administração/disposições específicas sobre as unidades autônomas de cada condômino. Houve, ainda, a modificação no rol do §1º, inciso II do art. 176 da Lei de Registros Públicos, com a inserção do número 6 entre uma das exigências da escrituração do Livro 2 (registro de imóveis).
Feitas as primeiras explanações, importante transcrever o conceito trazido pelo legislador, o qual dispôs:
Art. 1358-C – Multipropriedade é o regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada.
Ato contínuo, e como esboçado anteriormente, a instituição de imóveis em multipropriedade é algo que ocorre há muitos anos, independente da existência de legislação específica, que surgiu de maneira lenta e gradual, atendendo aos anseios da sociedade que utilizavam-se do compartilhamento de imóveis.
Vale lembrar, neste sentido, que em inédito julgamento no Superior Tribunal de Justiça, o Recurso Especial n.º 1.546.165/SP de Relatoria no Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, o qual foi vencido, tendo como voto vencedor o acórdão prolatado pelo Min. Rel. João Otávio de Noronha que, em Abril de 2016 reconheceu o instituto da multipropriedade imobiliária, atribuindo-lhe a natureza jurídica de direito real, face às discussões sobre a aplicação no campo obrigacional, fulminando questionamentos e insegurança aos particulares destas relações.
Em ementa do referido acórdão, o Min. Relator trouxe a conceituação do time sharing, em menção aos estudos do doutrinador Gustavo Tepedino, afirmando que:
O sistema time-sharing ou multipropriedade imobiliária, conforme ensina Gustavo Tepedino, é uma espécie de condomínio relativo a locais de lazer no qual se divide o aproveitamento econômico de bem imóvel (casa, chalé, apartamento) entre os cotitulares em unidades fixas de tempo, assegurando-se a cada um o uso exclusivo e perpétuo durante certo período do ano.
Ultrapassada a ideia de que a multipropriedade se aplica somente ao âmbito do lazer, é evidente que a legislação encetou novas hipóteses de aproveitamento, tais como em moradias temporárias, comércio sazonais, e também na exploração da área rural, para exercício, por exemplo, de atividade agrária – usufruindo-se da propriedade em sua totalidade frente à função econômica-social.
Em primeira impressão sobre “fração de tempo”, é evidente os inúmeros questionamentos que insurgem em contraposição aos atributos da propriedade, pois, em princípio, o conceito da propriedade enraizado na sociedade brasileira consiste em um direito individual, fundamental, exclusivo e absoluto que alguém possui em relação a um bem imóvel. E, por questões culturais, o brasileiro ao adquirir uma casa de campo, ou de praia por exemplo, assim o faz como uma segunda residência, ainda que fique meses, ou anos, sem sequer utilizá-la, apenas arcando com custos de manutenção, conservação e segurança.
Assim, por razões econômicas e pela necessidade de aproveitamento integral da propriedade, surge o time sharing, para viabilizar que diversos proprietários sejam donos de dias, semanas, ou meses de uma determinada propriedade.
De acordo com o art. 1.358-E do Código Civil, cada fração é indivisível e cada multiproprietário terá direito a, no mínimo, 7 dias seguidos ou intercalados para gozar do bem, o que nos leva a estabelecer a razoável existência de até 52 proprietários de um mesmo imóvel. Este parcelamento temporal em frações autônomas e periódicas, dá ensejo ao melhor aproveitamento do imóvel pelos proprietários ou até mesmo por terceiros, tendo em vista a possibilidade de cessão por locação ou comodato (inciso II, art. 1.358-I).
Numa situação hipotética, quatro colegas podem instituir a multipropriedade de um imóvel em determinada cidade turística para dividirem entre si, a possibilidade de gozar e usufruir do bem por três meses cada (sejam estes meses fixos, flutuantes – determinação do período de maneira periódica – ou mistos, previsão do §1º do art. 1.358-E). Note-se que tal façanha consente que os custos do imóvel sejam divididos, o que gera interesse em instituir a multipropriedade pelo acesso de maior parcela da população a uma casa de praia, de campo ou algo do gênero. Em contrapartida, é possível que estes quatro amigos instituam a multipropriedade e optem por dar a ela um fim comercial, sendo exequível a divisão dos lucros também pela divisão temporal do bem, desde que respeitada a flexibilização para fins de divisão de tempo.
Por todo exposto, em breves considerações iniciais, resta evidente que a ideia gira em torno de movimentar a economia e, seja a multipropriedade fundida entre 4 ou 52 proprietários, o objetivo é partilhar tempo e espaço gerando futuras aquisições para fins particulares e diversos empreendimentos de hotelaria, além de outros ramos no setor econômico. Por óbvio que, na prática, a teoria tende a ser conturbada, o que será alvo de pontuações adiante.
A insurgência da Lei regulamentou mais uma modalidade de condomínio no Código Civil, sendo já existentes o condomínio voluntário, necessário, edilício, urbano simples, de lotes, e agora, o condomínio multiproprietário. Sobre tal ponto, importante observarmos que o condomínio multiproprietário poderá, ou não, estar inserido no condomínio edilício.
O art. 1.358-O e seguintes do Código Civil dispõem especificamente sobre questões atinentes às unidades autônomas de condomínios edilícios, que poderão adotar o regime de multipropriedade em parte ou na totalidade de suas unidades autônomas, através de previsão no instrumento de instituição, ou por deliberação da maioria absoluta dos condôminos. O professor Flávio Tartuce chama a atenção para necessário ajuste da lei no que tange à menção “maioria absoluta”, a qual poderá ser interpretada como 50%+1, ou por 2/3 (dois terços), conforme a prática condominial – gerando insegurança caso não ocorra reforma.
Ainda em críticas, acredita o doutrinador que a imposição da contratação de um administrador profissional ao condomínio edilício que tenha adotado o regime da multipropriedade – assim previsto no art. 1.358-R, CC – pode ser considerado como inconstitucional, por violar a livre iniciativa (art. 170, CF), além de estabelecer reserva de mercado, sugerindo, neste sentido, que seja estabelecida a referida contratação de forma preferencial.
Já o advogado e professor especialista em Direito Civil, Rodrigo Toscano de Brito, aponta outra necessidade de reforma no que tange a figura do administrador à qualquer modalidade de condomínio multiproprietário, já que esta situação se mostra imprescindível somente nas hipóteses de inúmeros proprietários como em uma rede hoteleira, todavia, poderia ser dispensado no exemplo da aquisição por quatro colegas, que facilmente seriam capazes de deliberar sobre as questões de manutenção e regras do imóvel.
Outra crítica de flagrante inconstitucionalidade da Lei pelo doutrinador Tartuce encontra-se na hipótese da anticrese legal prevista no art. 1.358-S, que em seu parágrafo único admite que o condômino multiproprietário de condomínio edilício em regime de pool, que esteja inadimplente com suas obrigações seja proibido de usar sua unidade periódica, para que esta possa ser explorada, obtendo lucro líquido para quitação da dívida. Nas palavras do Dr. Flávio Tartuce, a norma seria inconstitucional por configurar uma espécie de confisco do uso, o que não se coaduna com o direito de propriedade, bem como com a função social prevista no art. 5, XXII e XXIII da CF, além de violar a essência do código de defesa do consumidor.
Por fim, ainda em ponderações sobre a nova legislação, atuantes da comunidade jurídica disparam críticas quanto a previsão inserida na Lei de Registros Públicos, especificamente quanto a abertura de matrícula autônoma para cada unidade periódica. Atualmente, dispõe o § 10 do art. 176 da L. 6.015/73 que: § 10. Quando o imóvel se destinar ao regime da multipropriedade, além da matrícula do imóvel, haverá uma matrícula para cada fração de tempo, na qual se registrarão e averbarão os atos referentes à respectiva fração de tempo, ressalvado o disposto no § 11 deste artigo. Vale mencionar, que no estado de São Paulo o E. Tribunal de Justiça já havia a referida previsão em suas Normas Extrajudiciais, vejamos:
229.1. Na hipótese de multipropriedade (time sharing) serão abertas as matrículas de cada uma das unidades autônomas e nelas lançados os nomes dos seus respectivos titulares de domínio, com a discriminação da respectiva parte ideal em função do tempo.
Pensando na hipótese de um condomínio edilício, teríamos no Cartório de Registro de Imóveis a existência da matrícula-mãe (imóvel-base) com hipotéticas 100 unidades autônomas que admitem multipropriedade (100 matrículas-filhas), e na possibilidade de divisão de unidade periódica para 52 condôminos multiproprietários, teríamos mais 5.200 matrículas-netas relativas as frações de tempo.
É notório que este crescimento exacerbado do número de matrículas deve compreender uma nova estrutura dos Cartórios, que deverá se atentar a todos os requisitos da legislação, o respeito ao limite quantitativo eventualmente previsto (art. 1.358-H, CC), o competente registro da instituição do condomínio, a legalidade da forma de instituição – que poderá se dar por ato entre-vivos ou por testamento; dentre tantos outros pontos essenciais a sua validade.
Ao que nos parece, as alterações acrescidas à lei de registros não geram efeitos práticos tanto para o registro de imóveis quanto para garantia de terceiros, dada imensa possibilidade de erro e confusão do sistema, que ainda nem se desfez dos registros por meio de transcrição, sendo essencial que o CNJ regulamente a forma de atuação dos registradores em âmbito nacional, garantindo maior segurança aos operadores do direito.
Por fim, o que se vê é um sistema há tempos existente, mas que, por outro lado, é tímido no âmbito nacional dada a extensão do território, as inúmeras possibilidades de aplicação, e a recentíssima positivação normativa, que trouxe inovações de aplicação prática, dúvidas e questionamentos àqueles que não estejam absolutamente insertos na comunidade jurídica com expertise no direito imobiliário.
Por certo, os particulares que possuam interesse na instituição do condomínio de multipropriedade deverão contar com assessoria jurídica especializada, assegurando-se do cumprimento de todos os requisitos legais, com a elaboração de documento apto que minimize os riscos do negócio.
BIBLIOGRAFIA:
Entrevista – Maya Garcia – Multipropriedade. Blog do Direito Civil & Imobiliário. 2019. Disponível em: < https://youtu.be/RqGrwSEgZwI>. Acesso em: 13.08.2019
Entrevista – Rodrigo Toscano de Brito – Aspectos Controvertidos da Multipropriedade. Blog do Direito Civil & Imobiliário. 2019. Disponível em: https://youtu.be/wsoSohQ6DIA>. Acesso em: 13.08.2019
Ferrari, Carlos Eduardo Peres. Aspectos relacionados à função social da multipropriedade. Disponível em <https://www.migalhas.com.br/Edilicias/127,MI307811,31047-Aspectos+relacionados+a+funcao+social+da+multipropriedade>. Consulta em 15.08.2019.
OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Considerações sobre a recente Lei da Multipropriedade. Disponível em: <https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/661740743/consideracoes-sobre-a-recente-lei-da-multipropriedade/>. Consulta em 13.03.2019.
Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.546.165 SP. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa//> Consulta em: 27.03.2019.
TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária. São Paulo: Saraiva, 1993.